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Paula Mesquita - PPT Presentation

Universidade de Coimbra Vestida para matar The Unvanquished Na ordem social do Sul anterior 136 Guerra Civil a condi141139o sexual de jovens brancas de classe alta como Judith Sutpen de ID: 209219

Universidade Coimbra Vestida para matar:

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Paula Mesquita Universidade de Coimbra Vestida para matar: The Unvanquished Na ordem social do Sul anterior ˆ Guerra Civil, a condi‹o sexual de jovens bran-cas de classe alta como Judith Sutpen, de Absalom! Absalom! ou Drusilla Hawk de TheUnvanquished encontrava-se mais rigidamente delineada do que porventura em qual-quer outro momento hist—rico. Se durante a inf‰ncia comportamentos arrapazados nasbrincadeiras das raparigas podiam facilmente ser tolerados, a partir da adolescncia adistribui‹o de papŽis sexualmente definidos totalmente distintos tornava-se umassunto t‹o mais sŽrio quanto a circunst‰ncia socioecon—mica das fam’lias. Nas classes malmente celebrada em cerim—nias de alguma circunst‰ncia, onde as davam a conhecer ˆ sociedade. Quer em casa quer nas institui›es escolares a educa-‹o das raparigas era estritamente direccionada para a prepara‹o do seu estatuto emadultas, de esposas e Ò mistresses Ó de planta‹o. Uma enorme nfase reca’a, pois, sobreo recato, a disciplina, a religiosidade e o sentido de obedincia, considerados qualida-Habituadas a uma vida de privilŽgio e de alguma liberdade, muitas raparigas tinhamalguma dificuldade em aceitar a restri‹o progressiva e asfixiante dos comportamentosconsiderados aceit‡veis para o seu sexo ao longo da adolescncia. Neste sentido, osensinamentos religiosos do Protestantismo (Òmist-born ProtestantismÓ, Faulkner, 1966[1934]: 269) continuavam a revelar-se o mais poderoso instrumento de controlo socialsobre as mulheres, havendo uma coincidncia quase total e muito conveniente(excepto, claro, para as visadas) entre o ideal de feminidade representado pela Ò thern lady Ó, fabrica‹o cultural do patriarcado sulista, e o ideal crist‹o de mulher. Acercada educa‹o formal das jovens da classe dos plantadores, Laura F. Edwards refere:(É) [T]hey gradually reorganized their individual identities and their worldview aroundthe religious tenets of the SouthÕs particular brand of evangelical Protestantism.Faith did provide support and comfort for women as the trials of adulthood took theirtoll, but it also reinforced womenÕs subordination to the men of their class and their commit-ment to slavery. Although Evangelical southern Protestants believed that everyone was spiri-stood at the head of the Christian household, just as white men presided over their earthlyones. White women, like slaves, were supposed to realize their spiritual mission throughcheerful obedience to the authority of white men. As members of the slaveholding class, they 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 309 were also to share in the responsibilities of overseeing African Americans. This social order,the SouthÕs ministers assured their congregations, was not just natural but divinely ordained.Any change would bring down the wrath of God. (Edwards, 2000: 19)TambŽm aqui a doutrina religiosa exercia profundos efeitos sobre a defini‹o socialdo papel da mulher branca, e em particular sobre o modo como as pr—prias mulheresentendiam a sua existncia em sociedade. Apesar de as denomina›es apelarem ˆsiderada a marca mais alta da virtude da mulher branca e, para alŽm dos l’deres reli-giosos, s— dela era realmente esperada. Uma das principais consequncias desta influn-ciaera, claro, a consolida‹o e perpetua‹o da sua imagem como ser inferior e pas-sivo, em eterna posi‹o de subordina‹o tanto ao paterfamilias terreno como ao Paidivino. Nem sempre, Ž certo, o servio a Deus parecia coadunar-se com algumas dis-trac›es mais mundanas mas igualmente indispens‡veis ao protocolo social, como oculto da aparncia pessoal e formas diversas de materialismo implicadas pelos pr—priosdeveres de supervis‹o da casa e da planta‹o. Queixando-se deste mesmo dilema,Sarah Wadley desabafava no seu di‡rio: Oh we young ladies are all so surface like, so useless; I pray God I may be useful, onlysteps the footsteps of my Redeemer,Õ and yet how I fail so sadly, many are the vain desiresthat every now and then trouble this prevailing one, and my flesh is so week, I am always conflito entre as preocupa›es espirituais e a vulnerabilidade ao discurso social domi-nante sobre a sexualidade das mulheres, sempre com vista ˆ contrac‹o do matrim—-nio. Os vestidos de arcos, por exemplo, de tecidos requintados e chegando a ser enco-mendados de Nova Iorque e Paris, tinham um not‡vel efeito ic—nico e simb—lico, j‡ quemantinham a mulher que os usava literalmente apartada do mundo; por outro lado,como nota Drew Gilpin Faust, eram instrumento do ideal assexuado de feminidade daŽpoca, encerrando e escondendo uma importante parte da anatomia das mulheres(Faust, 1996: 223). Distinguiam claramente a posi‹o social da mulher, j‡ que limitavambastante a sua liberdade de movimento, dificultando a realiza‹o das mais simples tare-fas domŽsticas). Por outro lado, a carestia dos materiais, modelos e acess—rios eram evi-dncia n‹o apenas da vaidade pessoal mas da sua fun‹o ornamental e emblem‡tica status quo familiar. Por œltimo, mas igualmente relevante, Ž necess‡rio lembrar queapenas aos homens era socialmente consentido ter a iniciativa do cortejo amoroso. Istosignificava que a œnica forma de ac‹o que restava ˆs mulheres nesta ‡rea era justa-mente o controlo sobre a sua apresenta‹o f’sica, que as deveria tornar desej‡veis paranecess‡ria ou primordialmente atraente de um ponto de vista sexual, ou seja, n‹o eratanto uma quest‹o de Ò sex appeal Ó como de Ò class appeal Ó. Com efeito, o conceito de southern belle Ó n‹o se referia exclusivamente ˆ beleza f’sica das jovens mas sobretudoˆ sua condi‹o socioecon—mica, sendo a rectid‹o moral e religiosa de uma jovem declasse mŽdia ou alta considerada suficiente compensa‹o por eventual falta de atribu- P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 310 De qualquer modo, Ž certo que estas mulheres se encontravam encurraladas entredeterminava devotarem boa parte do seu tempo a preocupa›es pouco contemplati-vas, como a e a ornamenta‹o. Esta era uma queixa comum, por exemplo, noseio de institui›es educacionais religiosas para mulheres.rigas deste segmento social, a experincia destes paradoxos gerava n‹o apenas confu-do quotidiano parecia comprometer a possibilidade de consubstanciar os elevados pre-ceitos morais e religiosos do ideal de Ò southern womanhood Ó. A tem‡tica geral dos ser-pregava a urgncia da salva‹o durante uma prec‡ria existncia terrena; por outro lado,incutia nos crentes Ð e sem dœvida particularmente nas mulheres Ð o temor a um DeusTodo-Poderoso, bem como fortes complexos de inferioridade e de culpa por uma natu-Perante este quadro, por exemplo, a constante penitncia de Rosa Millard perde aqualidade quase caricatural que de outro modo somos tentados a reconhecer nela,assumindo verosimilhana hist—rica. De facto, este seu zelo religioso raiando a com-puls‹o manifesta-se menos atravŽs de apelos e mais sob a forma de constantes pedi-dos de perd‹o a um Deus a quem se sente obrigada a prestar contas pelo mais ’nfimogesto. Rosa pede perd‹o mesmo quando os seus actos revelam auto-abnega‹o e a suadevo‹o aos mais desfavorecidos, e ainda que a ÒirregularidadeÓ dos seus procedi-mentos seja Ð no entender de todos, incluindo ela mesma Ð largamente compensadapela caridade prestada (ÒI defy You or anyone to say I [sinned for gain, greed or revenge].I sinned first for justice.Ó Ð Faulkner, 1966: 167). Com efeito, quer em Rosa quer emLouisa Hawk, o discurso religioso surge invariavelmente em termos de pecado, trans-gress‹o, castigo e perd‹o. ƒ evidente a propens‹o destas mulheres a sentimentos deculpa e o modo como vivem na preocupa‹o permanente de reafirmar perante Deuse a comunidade o seu respeito pela autoridade e lei divina. A pr—pria palavra ÒpecadoÓtem para algumas destas mulheres uma carga sem‰ntica perturbadora: Ò(...) a wordAunt Louisa would not even repeat but that Granny knew what it was (...)Ó ( Anne Firor Scott refere esta s’ndroma de culpabilidade como um fen—meno largamentegeneralizado, permeando milhares de di‡rios de mulheres sulistas desta Žpoca:Here were excellent women (É) whose sins were of the most minor kind. Yet they car-ried constantly with them the conception of a jealous, wrathful God, capable of punishing byeternal damnation their innate corruption, whom they were yet supposed to love. Because ofsonality Ð for spirit, for a roving mind, for pride to think well of themselves. (Scott, 1894: 197) ESTIDAPARAMATAR T ÒEvangelical ministers and Northern teachers attempted to bring student dress in line with theirnotions of the simplicity of Christian women and purity (demonstrated in this case in modest clothing)of the Òtrue womanÓ. These two images converged to require understatement, simplicity, and modesty,although a certain richness in fabric and attention to detail and fashionable cut set those with taste apart.Such requirements, however, were not consonant with the image of the Southern belle, whose ligh-thearted nature and coquettish ways suggested ruffles and laces, flowers and furbelows, jewels and lightpastelsÓ (Farnham, 1994: 133). 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 311 Claramente o indiv’duo livre, objecto de discursos religiosos, filos—ficos, legais eculturais da Žpoca n‹o era de raa negra nem do sexo feminino. Pelo contr‡rio, apesardo enorme abismo que separava a condi‹o social da mulher branca economicamentegeral, a verdade Ž que pelo menos num aspecto em particular estes grupos partilha-vam um destino idntico na ordem social do Sul: eram tratados como criaturas infanti-lizadas, e no extremo simplesmente como seres irracionais. Esta vis‹o desumanizantetinha como principal consequncia a defini‹o de uma condi‹o ÒnaturalÓ de depen-dncia, pelo que mulheres livres, escravas e escravos se viam consignados ao mundo womenÕs sphere Ó. ƒ de salientar,claro, que o di‰metro desta ÒesferaÓ era determinado fundamentalmente pela condi‹oecon—mica e racial de cada mulher. Por outras palavras, se as tarefas pr‡ticas dentro dacasa eram dom’nio comum dos v‡rios grupos, j‡ as fun›es de supervis‹o eram prer-rogativa da Ò mistress Ó, porventura com alguma assistncia das filhas, as Ò planta‹o. Do mesmo modo, as mesmas n‹o participavam no trabalho exterior da plan-ta‹o, onde a supervis‹o era responsabilidade de homens da fam’lia ou contratados. Adistribui‹o espacial de tarefas de acordo com o sexo era, porŽm, uma marca da cul-tura branca. O discurso predominante sobre a suposta bestialidade dos negros tinha,entre outros efeitos, um esbatimento ou mesmo anula‹o das distin›es socialmenteconstru’das entre os sexos. Se por um lado o sexo e a sexualidade dos escravos eramde um ponto de vista sociolaboral n‹o existia uma discrimina‹o r’gida, como sucediado outro lado da barreira racial. Com poucas excep›es (algumas incontorn‡veis, comoa amamenta‹o), a agricultura, a puericultura e o servio domŽstico eram actividadeslevadas a cabo por escravos e escravas, sem profundas distin›es de sexo nem distri-bui‹o desigual de tarefas de acordo com o n’vel de exigncia f’sica.Todo o meio cultural envolvente contribu’a, pois, para que os papŽis de mistress e (Òspotless womenÓ, Faulkner, 1966: 219) fossem investidos de um elevado refina-mento moral e espiritual que era, afinal, tido como a coroa da identidade colectiva doSul, Òthat for which [Confederate soldiers] diedÓ ( ). Apenas em dois aspectos asua existncia corp—rea tinha significado relevante em termos comunit‡rios: na apre-senta‹o f’sica, como vimos, por se tratar da manifesta‹o simb—lica da import‰nciasocial da fam’lia; e na fertilidade, j‡ que a esposa ideal deveria tambŽm ser capaz degerar uma prole ˆ medida das circunst‰ncias econ—micas e pretens›es do seu marido.Poucas p‡ginas ap—s a sua primeira apari‹o, Drusilla resume a que poderia aspirartipicamente uma rapariga da sua condi‹o no per’odo anterior ˆ guerra: Living used to be dull, you see. Stupid. You lived in the same house your father was bornin, and your fatherÕs sons and daughters had the sons and daughters of the same Negro sla-ves to nurse and coddle; and then you grew up and fell in love with your acceptable youngman, and in time you would marry him, in your motherÕs wedding gown, perhaps, and withthe same silver presents she had received; and then you settled down forevermore while yougot children to feed and bathe and dress until they grew up too; and then you and your hus-band died quietly and were buried together maybe on a summer afternoon just before sup-pertime. Stupid, you see. ( , 115) P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 312 Para muitas jovens sulistas a quem a guerra arrancou partes cruciais da sua normalexistncia, quer a n’vel familiar e social quer a n’vel econ—mico, a verdade Ž que acaboutambŽm por trazer todo um novo mundo de possibilidades de agncia, abalando con-sideravelmente as suas anteriores perspectivas do mundo. Drusilla, por exemplo, passaa entender a existncia anterior ˆ guerra como um per’odo de paz social podre e ilu-s—ria. Na tranquilidade econ—mica e social dessa Žpoca ela identifica agora factoresnegativos de estagna‹o e padroniza‹o de comportamentos, inibitivos do seu desen-volvimento individual, enquanto a guerra Ž agora vista como uma oportunidade pararedefinir o significado da sua (atŽ aqui inconsequente) existncia. Este renovado sen-tido de insatisfa‹o tem inequ’voca e generalizada correspondncia hist—rica, comopodemos atestar pelo testemunho de Ada Bacot:Widowed in her twenties, she had in addition lost her only child, and she found herselfin 1861 without any clear purpose in life. Yet as she contemplated the national crisis, shebelieved herself peculiarly equipped to deal with its demands. Her loss, she thought, had inu-red her to emotional suffering and privation, even though, she conceded, she had experien-ced no material hardship. She looked to war and upheaval as a divinely sent opportunity.ÔNow I can give myself up to my state, the very thought elevates me. These long years I haveprayed for something to do, perhaps my prayer is now being answered.Õ (Faust, 1996: 21-2)Com efeito, para alŽm dos tr‡gicos efeitos de priva‹o material e emocional, parav‡rios sectores da popula‹o, e fundamentalmente os que atŽ aqui viviam em totaldependncia e subordina‹o, a agita‹o social e pol’tica constituiu-se tambŽm comoum espao de interroga‹o espont‰nea em rela‹o ˆ verdadeira natureza e justia derela›es de poder baseadas em ÒverdadesÓ sociais, como a ÒnaturalÓ hegemonia dohomem branco. No universo social anterior ˆ guerra, por exemplo, n‹o teria sido t‹o aceitarem pacificamente a sua condi‹o de pas-sividade e despojamento pol’tico. Uma vez que a provis‹o material era absolutamentegarantida pelos pais, irm‹os e maridos, era mais f‡cil mant-las convencidas do valordo seu papel ornamental. Na verdade, em grande parte sentiam-se enaltecidas nessamesma fun‹o, empenhando-se em corresponder ˆs expectativas de um discurso socialque premiava o recato feminino e exaltava a santidade do mundo privado da domes-ticidade. No entanto, foradas durante o conflito a substitu’rem os seus familiares e pr—-tico, econ—mico, artesanal, industrial, educativo, etc.), estas mulheres viram-se inad-vertidamente confrontadas com as suas reais capacidades, assim como com as limita-›es atŽ aqui inimaginadas dos Òmasters Ó brancos. N‹o havia, ali‡s, real alternativa aessa descoberta, uma vez que a anterior estabilidade social, pol’tica e econ—mica era averdadeira base do pedestal espiritual em que estas mulheres eram colocadas. A partirde agora, bem mais prementes do que as anteriores atribula›es da alma, ocupavam--nas duras e bem prosaicas afli›es de mera subsistncia f’sica. Necessariamente houve, southern lady , que atŽ aqui devotava a sua inteira existncia aoconforto da fam’lia, do marido e dos filhos. A existncia das mulheres como simplescorol‡rios do poder do homem da casa pode bem avaliar-se pelo horror de Louisa Hawk,sacerdotisa do velho mito de feminidade sulista, quando Drusilla se transforma numapr‡tica e enŽrgica mulher-soldado imediatamente ap—s a morte em combate do seu noivo: ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 313 (...) there had been reserved for Drusilla the highest destiny of a Southern woman Ð tobe the bride-widow of a lost cause Ð and (...) Drusilla had (...) thrown that away, she had (É)become a lost woman and a shame to her fatherÕs memory (É). (Faulkner, 1966: 219)Se para a gera‹o de Aunt Louisa parece natural e auto-evidente que uma mulherse possa definir apenas e sempre em rela‹o a uma sucess‹o de homens mais pode-rosos do que ela mesma ao longo de toda uma vida ( daughter,bride,wife,widow para alŽm da viuvez (oficial ou de facto uma vez que atŽ ˆ dŽcada de 1880 era este o destino mais comum para as jovens noSul. Assim se entende o desespero de Drusilla quando por mais do que uma vez tentafazer ver ˆ m‹e que o seu ingresso no exŽrcito confederado n‹o Ž uma estratŽgia paraassegurar qualquer projecto ulterior de uni‹o matrimonial: ÒCanÕt you see that I am tiredof burying husbands in this war? That I am riding in Cousin JohnÕs troop not to find aman but to kill Yankees?Ó ( 220). ƒ de notar, ali‡s, uma curiosa evolu‹o no dis-curso de Drusilla, cujo ponto de vista se vai de tal modo confundindo com o dos seuscompanheiros de batalha que noutra ocasi‹o fraseia o mesmo pensamento nos seguin-tes termos: ÒWe went to the war to hurt Yankees, not hunting women!Ó ( Claramente, a auto-desidentifica‹o de Drusilla com o ideal de feminidade domŽstica, southern belle Ž de tal modo extrema que ela passa a constituir-se 233)] sem que a este facto esteja associada qualquer altera‹o a n’vel do seudesejo heterossexual. Verifica-se, no entanto, precipitada pelo caos da guerra, uma pro-gressiva separa‹o em Drusilla do que Judith Butler denomina de Òthree contingentdimensions of significant corporeality: anatomical sex, gender identity and gender per-formanceÓ (Butler, 1990: 137). Embora na narra‹o existam sugest›es ocasionais de queas mudanas operadas ao n’vel da imagem de Drusilla sejam um reflexo do seu traumade perda amorosa, parece-me evidente que ela tem origem em raz›es de ordem bas-tante mais pragm‡tica. Na sua primeira apari‹o, por exemplo, aquela que Ž conside-rada a melhor cavaleira das redondezas aparece montada num cavalo sem sela, regres-sada da beira-rio, onde foi dar conta de uma horda de escravos libertados que tentamjuntar-se aos soldados da Uni‹o. Este tipo de actividade, e todo o trabalho f’sico que Žagora a sua principal responsabilidade Ð proteger a casa dos soldados invasores, racharlenha, transportar ‡gua ou encontrar comida para a fam’lia Ð n‹o s‹o compat’veis comos inc—modos vestidos que normalmente veste. A mudana para as roupas de homem,que parece de facto despoletar a progressiva muta‹o a n’vel do seu comportamentosociossexual, surge, pois, de uma contingncia essencialmente pr‡tica. A partir domomento em que veste o primeiro par de calas, a express‹o Òlike a manÓ surge comoum autntico refr‹o nas descri›es de Drusilla:(É) Cousin Drusilla rising astride like a man (...) (Faulkner, 1966: 100-1).She was not tall; it was the way she stood and walked. She had on pants, like a man. Her hair was cut short; it looked like FatherÕs would when he would tell Granny abouthim and the men cutting each otherÕs hair with a bayonet. She was sunburned and herhands were hard and scratched like a manÕs that works. ( (É) her short jagged hair and the manÕs shirts and pants. ( , 113) P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 314 (É) her short jagged hair like she had cut it herself without bothering about a mirror (É) riding the troop like she was a man. ( (É) one young girl who happened to try and look and act like a man after her swee-theart was killed. ( Liberta do constrangimento f’sico das roupas de mulher, Drusilla inicia um processode tomada de conscincia do forte constrangimento pol’tico e espiritual a que atŽ aquiesteve sujeita. Confrontada com o reconhecimento do fen—meno de constru‹o socialde identidades atribu’das ao sexo anat—mico, e sentido-se limitada a este sistema cul-tural bin‡rio, decide modificar, ou melhor, ÒinverterÓ a sua apresenta‹o corporal (queratravŽs das roupas, quer atravŽs da postura), de modo a que outros reconheam na suapresena f’sica n‹o a ausncia de poder, identificada com os adereos de feminidade,mas antes a evidncia deste, consubstanciada nos v‡rios uniformes de masculinidadecom que passa a apresentar-se. Diane Roberts v neste transformismo de Drusilla umatentativa de inventar uma terceira identidade sexual (Roberts, 1994: 24), ou seja, nemmasculina, nem feminina, mas talvez Aunt Louisa esteja mais pr—xima na sua classifi-ca‹o da rebeldia de Drusilla. Podemos presumir que o que Aunt Louisa quer real-mente dizer quando refere: Ò(...) Drusilla had deliberately tried to unsex herself (...)Ó(Faulkner, 1966: 217) Ž realmente Òtried to un-gender herselfÓ, uma vez que Drusillan‹o inventa em si uma nova categoria de identidade sexual, antes tenta alinhar-se coma œnica categoria de identidade sexual com indisputada hegemonia sociopol’tica. Poroutras palavras, se Ž certo que a ambiguidade gerada pela sua fus‹o de identidades boyish belle ) p›e em causa esse sistema dual masculino/ feminino, n‹o Ž este de todoo objectivo de Drusilla, cujo projecto pol’tico Ž manifestamente individual. Mais do quecriar uma nova identidade sexual, Drusilla tenta tomar o caminho mais curto para selibertar totalmente da identifica‹o com ausncia de poder pol’tico, ou seja de se marcar e de se desmascarar de acess—rios ÒfemininosÓ onde a comunidade l limita-‹o, passividade, incapacidade, dependncia. Tendo j‡ os factores raa e classe socioe-con—mica do seu lado, ou seja, aqueles a partir dos quais todas as outras categorias s‹omarcadas nesta cultura como politicamente secund‡rias, s— falta mesmo incorporar umaidentidade sexual ÒneutraÓ em termos de poder pol’tico, que neste caso Ž inequivoca-A diatribe sociol—gica de Drusilla que vimos anteriormente, Ž claro, Ž t‹o incisivaquanto radical para uma jovem da sua Žpoca. Drusilla critica de forma breve mas con-tundente a forma como atŽ aqui a vida de jovens como ela era totalmente condicio-nada por toda a espŽcie de press›es familiares e sociais. N‹o s‹o apenas as condi›esrestritivas de uma existncia exclusivamente dedicada ˆ domesticidade e ˆ maternidadeque Drusilla rejeita, considerando esse tipo de rotina de um ponto de vista existencialum permanente estado de sono. O ritmo mec‰nico do seu discurso e a alus‹o a rituaisde hereditariedade e padroniza‹o dos comportamentos femininos atestam a sua frus-tra‹o perante a impossibilidade de, enquanto mulher, construir e ver reconhecida umaidentidade individual. Mas sem dœvida que o contexto particular em que Drusilla falaŽ determinante para o articular da sua nova perspectiva. Todos os vest’gios que encon-tramos do seu modo de vida antes da guerra parecem indicar que atŽ ao seu in’cio Dru-silla vivia de acordo com as expectativas da sua classe. Sabemos, por exemplo, que ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 315 tambŽm teve o seu Ò Ó, um noivo her—ico que acaba por morrer em combate; sabe-mos ainda, atravŽs dos simb—licos baœs do enxoval que a sua m‹e transporta, que asua indument‡ria habitual antes do conflito eram convencionais vestidos de arcos. Asilla, pelo menos da sua submiss‹o aos estere—tipos sexuais ent‹o vigentes.Para comear, embora n‹o se possa dizer que a express‹o de sentimentos idnticospor parte de mulheres fosse inŽdita no per’odo anterior ˆ guerra, a verdade Ž que setratava principalmente de desabafos e confiss›es secretas a di‡rios privados, frequente-mente seguidas de palavras de retracta‹o e pudor. Com efeito, era religiosa e socialmentee a religi‹o insistentemente frisava a import‰ncia do auto-sacrif’cio e da dedica‹o aomarido e filhos, que seriam a express‹o na terra da servid‹o ao Pai Divino.tes desafios ˆ fŽ das mulheres em geral, n‹o apenas em termos puramente teol—gicos,mas tambŽm em rela‹o a v‡rios dos preceitos comportamentais reforados pela ideo-logia religiosa, nomeadamente a passividade, a submiss‹o e a dependncia. Para alŽmdas terr’veis priva›es materiais que desde bastante cedo estas mulheres sofreram naretaguarda do conflito, o facto de a esmagadora maioria se ver sem a presena e orien-ta‹o dos homens da casa determinou que elas mesmo tomassem responsabilidadepela sua sobrevivncia e a dos que ficavam. ƒ o que acontece com Judith, Clytie e RosaColdfield em Absalom! Absalom! e agora Rosa Millard, que tambŽm se v subitamenteforada a tomar conta da fam’lia e dos escravos de Sartoris e de todo o seu patrim—-nio. Se no caso de Granny Millard e de inœmeras mulheres sulistas a guerra n‹o abalouas suas crenas (muitas nunca sequer duvidando do apoio divino ˆ sua fac‹o pol’tica),a verdade Ž que muitas outras se viram foradas a questionar conceitos atŽ aqui nadaproblem‡ticos, como Ž claramente o caso de Drusilla na fic‹o, ou de muitas das suascongŽneres hist—ricas: Significantly, some women no longer able passively to bear warÕs suffering were propel-led to action in pursuit of their own interests in this world. Ida Wilkom of Louisiana abando-ned resignation and calm acceptance of her lot for political expression (É) [She] demandedher husbandÕs release from the army, explaining, ÔI have tried everything to submit to the willof God in tranquil resignation; but I find, a human being can suffer only according to humanNa sua œnica alus‹o remotamente religiosa, Drusilla agradece sarcasticamente a Deuspelas actuais condi›es de precariedade material e econ—mica, que ironicamente alibertam das v‹s obriga›es que acompanhavam o estatuto da southern lady: God for nothingÓ (Faulkner, 1966: 115). Sarah Morgan, uma jovem do Louisiana daŽpoca, revoltada por n‹o poder tomar parte na guerra, questionava-se: ÒWhat is the usenascido mulher, uma vez que os privilŽgios da sua anterior existncia se transforma-vam no de agora (Faust, 1996: 20). Poderia, ali‡s, imaginar-se que umaexpress‹o de rebeli‹o t‹o radical como a de Drusilla Ð n‹o apenas em termos seccio-nais mas sobretudo em termos de desafio ˆ pol’tica sexual da sua cultura Ð apenas sepoderia registar em fic‹o. N‹o Ž o caso. Gilpin Faust refere registos de 400 mulheresde ambas as fac›es infiltradas nos campos de batalha ao longo dos 4 anos de guerra, P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 316 salientando inclusivamente um caso que tivera semelhanas espantosas com o trajecto(É) Amy Clarke, who volunteered as a private (É) in order not to be parted from herhusband. After his death at Shiloh, she continued to fight, was twice wounded, and then wastaken prisoner by the Yankees, who discovered her sex. ÔBut they did not permit her to returnÓto the South, the Mercury explained, Ôuntil she had donned female apparelÕ(É). ( (Esta œltima exigncia ecoando com curiosa exactid‹o a imposi‹o de Sartoris aDrusilla ap—s o seu casamento. Apesar de no contexto desregrado da batalha ter con-vivido sem quaisquer objec›es com o uniforme desta Ð isto durante uma longa tem-porada em que lutaram lado a lado, como iguais Ð de volta ˆ comunidade Sartoris n‹oest‡ preparado para conviver no seu casamento com um corpo t‹o amb’guo de umponto de vista sociossexual).Relatos pessoais de mulheres sulistas do per’odo de 1861-65, recolhidos por WalterSullivan, contam hist—rias similares de mudana radical na vida das cidad‹s. Entre cartase excertos de di‡rios incluem-se relat—rios como o de Belle Boyd e LorŽta JanŽta VŽlas-vem envolvidas em espionagem de alto risco, chegando mesmo a ser detidas pelaUni‹o como prisioneiras de guerra (Sullivan, 1995). ÒWhatÕs a dress?Ó Durante o per’odo de guerra, Drusilla resiste a ser contida no estere—tipo de femini-dadeprescrito com uma nota de desafio que no Sul desta Žpoca teria tido contornosde heresia. Na verdade, o ideal da southern womanhood constituindo-se ele mesmo como uma ideologia semi-religiosa, torna-se agora um de contesta‹o por excelncia. A ausncia de discurso religioso em Drusilla, ao contr‡riodo que vemos em Granny Millard, n‹o s— est‡ de acordo com o seu novo papel mascu-linizadocomo Ž ao mesmo tempo sintom‡tico de profundas fissuras no sistema de valo-res, quer a n’vel religioso quer a n’vel da defini‹o social das identidades sexuais. Nestesentido, as transforma›es operadas na sua apresenta‹o (/ representa‹o) f’sica deDrusilla, da disposi‹o do seu corpo, podem tambŽm ser lidas como uma forma de ico-noclastia, uma rejei‹o de tradi›es e imagens de feminidade que atŽ aqui lhe haviamsido propostas como leis absolutamente naturais. Se quisermos, Ž uma espŽcie de queimade rebeldia contra a conven‹o social e de oposi‹o ao culto da imagem fragilizada damulher Ð Ž uma forma eficaz de criar e expor atravŽs do seu pr—prio corpo as Òdes-continuidadesÓ do sexo prŽ-discursivo que Judith Butler discute em Gender Trouble When the disorganization and disaggregation of the field of bodies disrupt the regulatoryfiction of heterosexual coherence, it seems that the expressive model loses its descriptiveforce. That regulatory ideal is then exposed as a norm and a fiction that disguises itself as adevelopmental law regulating the sexual field that it purports to describe. (Butler, 1990: 136)Ou seja, a partir do momento em que Drusilla adopta com consider‡vel sucesso com-portamentosmasculinos, exp›e n‹o apenas a artificialidade de comportamentos iden-tificados como ÒnaturalmenteÓ femininos ou masculinos, mas tambŽm a natureza frag-ment‡ria, flutuante, e essencialmente imitativa dos v‡rios factores constitutivos dessa ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 317 identidade sexual supostamente una e coerente. A denœncia da gŽnese pol’tica da divi-s‹o sexual Ž feita isolando o sexo biol—gico das caracter’sticas comportamentais quelhe s‹o atribu’das e dos novos comportamentos ÒincoerentesÓ assumidos. A sua novaliberdade de ac‹o e movimento denunciam o modelo de feminidade atŽ aqui culti-vado n‹o apenas como constru‹o social mas sobretudo como constri‹o social. Paracomear, ao contr‡rio do que acontece com muitas das hero’nas de Yoknapatawpha, apresena f’sica de Drusilla Ž sempre uma presena indiscreta, centralizadora das aten-›es, uma perpŽtua perturba‹o para o observador Bayard, e pois para o leitor que av atravŽs do olhar deste. Este corpo, n‹o apenas bem vis’vel mas em constante agita-‹o Ž em si mesmo a nega‹o do ideal de mulher fantasm‡tica, que ÒpairaÓ, que vemosem Rosa Coldfield ou em Judith Sutpen.Movido porventura mais pelo seu perspicaz sentido hist—rico do que propriamentepela liberdade ideol—gica e art’stica, de forma ainda mais espectacular do que em , Faulkner apresenta o contexto paradoxal da Guerra Civil numa rela‹o siner-gŽtica com a crise dos estere—tipos sexuais da cultura sulista contempor‰nea. Muito setem discutido o papel Rosa Millard e Drusilla no desafio ˆs conven›es sociais de femini-dade. Mas Ž necess‡rio manter presente que, particularmente no caso de Drusilla, a trans-gress‹odesses c—digos sociais a pretexto da defesa ÒnacionalÓ n‹o tem uma verdadeiradimens‹o de ÒfeminismoÓ primordial, isto Ž, n‹o tem pretens›es nem finalidades pol’ti-cas no sentido de representa‹o de um colectivo, de uma identidade de grupo. Toda aactua‹o ÒirregularÓ de Rosa acaba por reafirmar o anterior status quo da divis‹o dos sexos,uma vez que a sua inten‹o Ž preservar o patrim—nio e a fam’lia de John Sartoris atŽnada se detŽm na considera‹o abstracta da sua subjuga‹o pol’tica. O que ela faz Židentificar e eliminar os obst‡culos sociais ˆ sua vontade de agir de identidade sexual for o que nesse momento obsta a essa sua liberdade, ent‹o ser‡ esseo obst‡culo a derrubar. Enquanto o actual caos social lhe der espao de manobra paraisso, Drusilla passar‡ por cima deste preceito social como por cima de qualquer outro,como uma espŽcie de vers‹o feminina de Thomas Sutpen; tambŽm ela tem a sua espŽciede Òruthless Drusilla codeÓ. Com efeito, n‹o se pode exactamente dizer que seja maisou menos subversiva que Sutpen, no sentido em que ambos se limitam a tentar ultrapas-sartudo o que possa comprometer as suas miss›es pessoais. S‹o quest›es de ambi‹oindividual, mais do que de subvers‹o consciente de normas sociais de sexo ou de classe,e ambos tomar‹o por quaisquer meios o poder pol’tico que se propuseram alcanar.Nesta perspectiva, se Ž comum entender a mudana radical na aparncia de Dru-silla como uma experincia de Faulkner na sua explora‹o ficcional das rela›es depoder entre os sexos, a verdade Ž que essas mudanas devem mais a realidades hist—-ricas em registo do que ao seu arrojo ideol—gico ou criativo. ƒ um facto que o trans-vestismo de Drusilla coloca v‡rias quest›es dentro e fora da narrativa acerca das rela-›es entre homens e mulheres neste quadro cultural, mas Ž igualmente verdadeiro queesse tipo de transforma‹o era bastante mais comum durante a Guerra Civil do que sepossa ˆ partida imaginar. Neste sentido, e sem qualquer desmŽrito do ponto de vistaart’stico, Faulkner limita-se a apresentar factos historicamente verific‡veis, mudanas deatitude n‹o de uma ou duas mulheres sulistas da Žpoca, mas de milhares de mulheresda Confedera‹o que colocavam a defesa do sentido de na‹o do Sul acima dos pro- P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 318 tocolos sociais da feminidade. O penteado de Drusilla Ð cabelo curto, com estilo arra-pazado Ð por exemplo, n‹o s— n‹o teria sido totalmente excepcional como seguiainclusivamente uma espŽcie de moda, ao ponto de ter um nome espec’fico: ÒshinglingÓ.Muitas mulheres realmente cortavam o cabelo desta maneira, n‹o apenas por motivospr‡ticos (menor disponibilidade de tempo e de serventes para ajudar na prepara‹odi‡ria dos penteados e vestidos), mas tambŽm por necessidade de uma afirma‹o maisagressiva: ÒIt was the fashion among some young ladies to wear short hairÓ, lembravauma mulher acerca do per’odo 1861-65. ÒIf they could not go with their brothers to thewar, they would, at least, look as military as possibleÓ ( ‹o ˆ indument‡ria, colocavam-se quest›es idnticas e limita›es ainda mais sŽrias.Tornou-se tambŽm um fen—meno generalizado as mulheres comearem nesta altura atrocar os seus vestidos por roupas de homem. De um modo geral, tendo em conta ovalor extremamente pejorativo na Žpoca do conceito de Ò unsexed woman Ó, sem dœvidaque este tipo de decis‹o teria de emergir de alarmantes necessidades pr‡ticas (escassezde tecidos, novas tarefas que exigiam maior necessidade de movimento, e por diante):ÒCordelia Scales, carrying a pistol whenever she left the house, parted her hair on the ƒ certo que Drusilla apenas toma conscincia destas possibilidades com o advir daguerra e de toda a desordem social consequente. De outro modo, possivelmente nuncateria sido despertada, ou pelo menos seria publicamente manifesta, a sua sagacidadede ac‹o. Do mesmo modo, quando o conflito chega ao fim, a mulher que o exŽrcitoda Uni‹o n‹o conseguiu derrubar n‹o tem agora fora para enfrentar sozinha a pres-s‹o social da polida comunidade feminina de Jefferson, que reclama o seu regresso ˆconformidade com o estere—tipo sexual que desafiou todo esse tempo. Sem dœvida queao fraquejar da sua resistncia moral n‹o Ž alheia a atitude de Sartoris, seu ex-coronel.Se atŽ aqui John a respeitou como um dos seus soldados mais destemidos, terminadoo conflito acaba por ir cedendo ao clamor das senhoras lideradas por Louisa Hawk.Como consequncia, e em particular ap—s o casamento com Drusilla, acaba por voltara reconhecer nela a sua qualidade de ÒapenasÓ mulher, ou seja, uma presena circuns-raj‡-la a envergar de novo os vestidos, Ž como se Drusilla comeasse gradualmente aimaterialidade que referi anteriormente. A obsess‹o com a sua imagem corp—rea n‹o Žsua, mas dos que ˆ sua volta a observam, como ela bem sabe, e da’ o horror que lhecausa a vis‹o do baœ dos vestidos (ÒthatÕs what beat Drusilla: the trunksÓ, Faulkner, 1966:230). Como se constata em seguida, n‹o Ž sequer o caso que Drusilla retome a umapostura mais ÒfemininaÓ dentro desses vestidos. Mas ela est‡ ciente, como est‹o as 14senhoras das charruas, que os vestidos a definem assim para outros olhares, e que issolimitar‡ eficazmente a sua liberdade individual; n‹o Ž Drusilla j‡ quem ÒrepresentaÓuma identidade sexual, s‹o as roupas que agora o fazem por ela, contra a sua pr—priamuito tempo vivido prisioneiras dos seus pr—prios s’mbolos de privilŽgio:The sensations generated by wearing menÕs clothing were unexpectedly powerful,prompting [Emma Crutcher] to reflect to her husband, Will, about the way in which dress sha-ped not only female bodies but female lives. ÔA woman,Õ she wrote, Ôdoes feel so light and ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 319 ethereal when she slips out from the long, tangling, encumbering skirts that wrap around herfeet, that I expect I should find great difficulty in keeping my toes from flying up like a bal-Por outro lado, o que me parece em toda a problem‡tica que sempre rodeia a cor-porealidade de Drusilla Ž que o factor classe Ž muitas vezes mais determinante do queo factor de identidade sexual, o mesmo se verificando no caso de Rosa Millard. Na ver-dade, apenas lhes Ž tolerado ocupar lugares de poder identificados como masculinosuma vez que dentro da sua classe socioecon—mica, apesar de mulheres, de qualquermodo j‡ s‹o mais poderosas do que, por exemplo, um homem branco do meio socialdesignado por Ò white trash Ó. ƒ —bvio que a integridade f’sica de Drusilla num meioaltamente machista como o exŽrcito, ainda por cima em condi›es prolongadas dedureza extrema, se preserva essencialmente devido ao seu estatuto privilegiadoenquanto familiar do aristocr‡tico Coronel. TambŽm Rosa Millard retira o m‡ximo pro-veito desse elevado estatuto social durante um largo per’odo de tempo, pois n‹o sepode imaginar que os seus mirabolantes logros e negocia›es com os unionistasencontrassem o mesmo tipo de acolhimento e toler‰ncia por parte do exŽrcito inimigocaso se tratasse de uma mulher pobre e sem liga›es familiares de peso no mundo mili-tar e pol’tico. S‹o comuns as acusa›es a Faulkner de castigar estas duas mulheres como desaparecimento e a morte pela sua usurpa‹o do poder masculino, e a Drusilla comofraude deste ÒfeminismoÓ incipiente, por se revelar uma sanguin‡ria no dia dos assas-sinatos eleitorais. Mas na realidade, ambas conseguem aquilo que conseguem tambŽmpor fora individual pr—pria, e n‹o porque as mulheres se destaquem repentinamente,revelando-se como melhores do que os homens. Granny atinge os seus objectivos eco-n—micos porque Ž uma h‡bil gestora e negociadora. Drusilla distingue-se na guerra porser uma combatente destemida. Outras mulheres da hist—ria, como Louisa Hawk, porexemplo, n‹o alteram em nada a sua postura nem se afastam por pouco que seja domodelo tradicional de feminidade. Assim, ao contr‡rio do que cr Roberts, penso quea morte de Rosa Millard n‹o Ž o preo da mudana de mentalidades em rela‹o aosprivilŽgios da sua identidade sexual. Quem a mata n‹o discrimina sexo, classe, idadeou cor, mas apenas lucro financeiro. Sem dœvida que quaisquer que fossem as suas cir-cunst‰ncias individuais, o neg—cio teria desenlaces idnticos. Do mesmo modo, tambŽma violncia de Drusilla deve ser analisada em contexto, havendo v‡rias quest›es a pon-derar em rela‹o ao seu permanente estado de raiva. Naturalmente passa por umestado de choque, ao ver todo o seu mundo social e familiar brutalmente destru’do.De acordo com a sua educa‹o privilegiada, parecem existir muito poucas raz›es porque continuar a viver. Mais tarde, as exclama›es de —dio que passa a dirigir ao exŽr-cito Yankee, e que muitas contempor‰neas hist—ricas ecoavam das formas mais diver-sas e estridentes, Ž em grande parte atribu’vel ao seu recŽm-descoberto sentido de ina-dequa‹o e inutilidade. Especialmente quando existe o tempo todo uma certa cons-cincia de que se v agora t‹o alargado o seu campo de ac‹o, Ž apenas por uma sim-ples contingncia log’stica, e que no final da guerra esse poder transit—rio regressar‡ am‹os masculinas. Em rela‹o ao seu desprezo pelas vidas dos dois homens assassina-dos por Sartoris, Ž preciso relembrar que Drusilla n‹o foi educada, como acontece comJudith, com igual sentido de equidade em rela‹o ao negro. Apesar de terem ambas amesma educa‹o racista, Judith n‹o viveu sempre segregada como Drusilla. Teve desde P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 320 a mais remota inf‰ncia a companhia permanente da sua insepar‡vel meia-irm‹, Clytie,o que muito ajuda a explicar a sua aparente imperturbabilidade perante a diferenaracial. J‡ Drusilla cresceu vendo o seu estatuto garantido sob a forma de subordina‹ode brancos pobres e de negros escravizados.Por outro lado, o fervor nacionalista da comunidade de Sul em geral sobrepunha--se a todos os outros valores sociais. Inœmeros abolicionistas do Sul acabavam por sejuntar ao exŽrcito confederado, obrigados pelo seu sentido de lealdade aos estadossulistas, de modo que mais dificilmente seriam os apoiantes da escravatura a repensara quest‹o racial justamente no seio desta convuls‹o pol’tica e social. O racismo pro-fundo era, de resto, igualmente marcado nos dois exŽrcitos em confronto. Ora se comodiscuti anteriormente a genu’na preocupa‹o de Drusilla Ž garantir alguma suficinciapol’tica individual neste agitado e traum‡tico contexto, n‹o ser‡ justamente este omomento em que se deter‡ em contempla›es humanistas Ð quer em rela‹o aos odia- yankees, que servem de bode expiat—rio para toda a sua frustra‹o pessoal, querem rela‹o aos negros, ou mesmo em rela‹o ˆs outras mulheres. Com efeito, a rebel-dia de Drusilla no plano das identidades sexuais n‹o Ž, como vimos, express‹o de umsentido de opress‹o de grupo, mas de motiva›es puramente individualistas. Na ver-ironicamente, a escrava Louvinia. Ali‡s, o desenvolvimento final de regresso ˆ Òpris‹oÓdo ideal recuperado de feminidade Ž a sua maior li‹o pol’tica, e tambŽm uma espŽ-cie de preo que Drusilla paga por querer rebelar-se em isola‹o, acabando por trans-formar as outras mulheres da comunidade nas suas mais implac‡veis perseguidoras.H‡ tambŽm que manter presente que, realisticamente, o valor da vida dos doishomens assassinados por Sartoris teria de facto sido considerado pela elite branca daregi‹o como inferior aos interesses da hierarquia racial do Sul, que em termos pr‡ticosse manteve firme muito para alŽm do final da guerra. O pr—prio discurso dos movi-mentos feministas no Sul no in’cio do sŽculo XX reforavam essa segrega‹o, uma vezque parte do argumento de eleva‹o da condi‹o da mulher branca assentava nadegrada‹o agravada da condi‹o da mulher e do homem negros. Por outras palavras,em textos como este talvez n‹o devamos ser t‹o r‡pidos a imputar ˆ misoginia deFaulkner os desenlaces menos inspiradores das hist—rias de Drusilla e da sua tia. Dru-silla n‹o Ž apenas a (de resto admir‡vel) hero’na novecentista com um Òinc—modoÓdefeito de obsess‹o racista, que fere a sensibilidade politicamente correcta do leitoractual. Tal como Sartoris e Sutpen, ela Ž fundamentalmente o produto da sua Žpoca ede uma cultura profundamente mergulhada em crises sociais e ideol—gicas. Toda afora destes perfis e a sua obstina‹o cega pelo poder no fundo escondem um pro-fundo sentido de insegurana e de desajustamento face a expectativas sociais. Por outrolado, numa leitura foucaultiana deste sistema sociopol’tico, ainda que consideremos aactua‹o destas mulheres insuficiente do ponto de vista das rela›es raciais, em termosdo questionamento das rela›es de poder entre os sexos, n‹o se deve subestimar aimport‰ncia da sua interven‹o social aos mais variados n’veis. Apesar do enormeesforo p—s-Guerra Civil para reinstalar, intacto, o anterior sistema de rela›es sociais,Ž a inscri‹o continuada destas breves agita›es, subvers›es e rupturas o que permitepara a reformula‹o progressiva do conceito de feminidade no Sul, atŽ aos dias de hoje. ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 P‡gina 321 BUTLER, Judith (1990), Gender Trouble:Feminism and the Subversion of Identity York and London, Routledge.EDWARDS, Laura F. 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