Universidade de Coimbra Vestida para matar The Unvanquished Na ordem social do Sul anterior 136 Guerra Civil a condi141139o sexual de jovens brancas de classe alta como Judith Sutpen de ID: 209219
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Paula Mesquita Universidade de Coimbra Vestida para matar: The Unvanquished Na ordem social do Sul anterior Guerra Civil, a condio sexual de jovens bran-cas de classe alta como Judith Sutpen, de Absalom! Absalom! ou Drusilla Hawk de TheUnvanquished encontrava-se mais rigidamente delineada do que porventura em qual-quer outro momento histrico. Se durante a infncia comportamentos arrapazados nasbrincadeiras das raparigas podiam facilmente ser tolerados, a partir da adolescncia adistribuio de papis sexualmente definidos totalmente distintos tornava-se umassunto to mais srio quanto a circunstncia socioeconmica das famlias. Nas classes malmente celebrada em cerimnias de alguma circunstncia, onde as davam a conhecer sociedade. Quer em casa quer nas instituies escolares a educa-o das raparigas era estritamente direccionada para a preparao do seu estatuto emadultas, de esposas e Ò mistresses Ó de plantao. Uma enorme nfase recaa, pois, sobreo recato, a disciplina, a religiosidade e o sentido de obedincia, considerados qualida-Habituadas a uma vida de privilgio e de alguma liberdade, muitas raparigas tinhamalguma dificuldade em aceitar a restrio progressiva e asfixiante dos comportamentosconsiderados aceitveis para o seu sexo ao longo da adolescncia. Neste sentido, osensinamentos religiosos do Protestantismo (Òmist-born ProtestantismÓ, Faulkner, 1966[1934]: 269) continuavam a revelar-se o mais poderoso instrumento de controlo socialsobre as mulheres, havendo uma coincidncia quase total e muito conveniente(excepto, claro, para as visadas) entre o ideal de feminidade representado pela Ò thern lady Ó, fabricao cultural do patriarcado sulista, e o ideal cristo de mulher. Acercada educao formal das jovens da classe dos plantadores, Laura F. Edwards refere:(É) [T]hey gradually reorganized their individual identities and their worldview aroundthe religious tenets of the SouthÕs particular brand of evangelical Protestantism.Faith did provide support and comfort for women as the trials of adulthood took theirtoll, but it also reinforced womenÕs subordination to the men of their class and their commit-ment to slavery. Although Evangelical southern Protestants believed that everyone was spiri-stood at the head of the Christian household, just as white men presided over their earthlyones. White women, like slaves, were supposed to realize their spiritual mission throughcheerful obedience to the authority of white men. As members of the slaveholding class, they 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 309 were also to share in the responsibilities of overseeing African Americans. This social order,the SouthÕs ministers assured their congregations, was not just natural but divinely ordained.Any change would bring down the wrath of God. (Edwards, 2000: 19)Tambm aqui a doutrina religiosa exercia profundos efeitos sobre a definio socialdo papel da mulher branca, e em particular sobre o modo como as prprias mulheresentendiam a sua existncia em sociedade. Apesar de as denominaes apelarem siderada a marca mais alta da virtude da mulher branca e, para alm dos lderes reli-giosos, s dela era realmente esperada. Uma das principais consequncias desta influn-ciaera, claro, a consolidao e perpetuao da sua imagem como ser inferior e pas-sivo, em eterna posio de subordinao tanto ao paterfamilias terreno como ao Paidivino. Nem sempre, certo, o servio a Deus parecia coadunar-se com algumas dis-traces mais mundanas mas igualmente indispensveis ao protocolo social, como oculto da aparncia pessoal e formas diversas de materialismo implicadas pelos prpriosdeveres de superviso da casa e da plantao. Queixando-se deste mesmo dilema,Sarah Wadley desabafava no seu dirio: Oh we young ladies are all so surface like, so useless; I pray God I may be useful, onlysteps the footsteps of my Redeemer,Õ and yet how I fail so sadly, many are the vain desiresthat every now and then trouble this prevailing one, and my flesh is so week, I am always conflito entre as preocupaes espirituais e a vulnerabilidade ao discurso social domi-nante sobre a sexualidade das mulheres, sempre com vista contraco do matrim-nio. Os vestidos de arcos, por exemplo, de tecidos requintados e chegando a ser enco-mendados de Nova Iorque e Paris, tinham um notvel efeito icnico e simblico, j quemantinham a mulher que os usava literalmente apartada do mundo; por outro lado,como nota Drew Gilpin Faust, eram instrumento do ideal assexuado de feminidade dapoca, encerrando e escondendo uma importante parte da anatomia das mulheres(Faust, 1996: 223). Distinguiam claramente a posio social da mulher, j que limitavambastante a sua liberdade de movimento, dificultando a realizao das mais simples tare-fas domsticas). Por outro lado, a carestia dos materiais, modelos e acessrios eram evi-dncia no apenas da vaidade pessoal mas da sua funo ornamental e emblemtica status quo familiar. Por ltimo, mas igualmente relevante, necessrio lembrar queapenas aos homens era socialmente consentido ter a iniciativa do cortejo amoroso. Istosignificava que a nica forma de aco que restava s mulheres nesta rea era justa-mente o controlo sobre a sua apresentao fsica, que as deveria tornar desejveis paranecessria ou primordialmente atraente de um ponto de vista sexual, ou seja, no eratanto uma questo de Ò sex appeal Ó como de Ò class appeal Ó. Com efeito, o conceito de southern belle Ó no se referia exclusivamente beleza fsica das jovens mas sobretudo sua condio socioeconmica, sendo a rectido moral e religiosa de uma jovem declasse mdia ou alta considerada suficiente compensao por eventual falta de atribu- P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 310 De qualquer modo, certo que estas mulheres se encontravam encurraladas entredeterminava devotarem boa parte do seu tempo a preocupaes pouco contemplati-vas, como a e a ornamentao. Esta era uma queixa comum, por exemplo, noseio de instituies educacionais religiosas para mulheres.rigas deste segmento social, a experincia destes paradoxos gerava no apenas confu-do quotidiano parecia comprometer a possibilidade de consubstanciar os elevados pre-ceitos morais e religiosos do ideal de Ò southern womanhood Ó. A temtica geral dos ser-pregava a urgncia da salvao durante uma precria existncia terrena; por outro lado,incutia nos crentes Ð e sem dvida particularmente nas mulheres Ð o temor a um DeusTodo-Poderoso, bem como fortes complexos de inferioridade e de culpa por uma natu-Perante este quadro, por exemplo, a constante penitncia de Rosa Millard perde aqualidade quase caricatural que de outro modo somos tentados a reconhecer nela,assumindo verosimilhana histrica. De facto, este seu zelo religioso raiando a com-pulso manifesta-se menos atravs de apelos e mais sob a forma de constantes pedi-dos de perdo a um Deus a quem se sente obrigada a prestar contas pelo mais nfimogesto. Rosa pede perdo mesmo quando os seus actos revelam auto-abnegao e a suadevoo aos mais desfavorecidos, e ainda que a ÒirregularidadeÓ dos seus procedi-mentos seja Ð no entender de todos, incluindo ela mesma Ð largamente compensadapela caridade prestada (ÒI defy You or anyone to say I [sinned for gain, greed or revenge].I sinned first for justice.Ó Ð Faulkner, 1966: 167). Com efeito, quer em Rosa quer emLouisa Hawk, o discurso religioso surge invariavelmente em termos de pecado, trans-gresso, castigo e perdo. evidente a propenso destas mulheres a sentimentos deculpa e o modo como vivem na preocupao permanente de reafirmar perante Deuse a comunidade o seu respeito pela autoridade e lei divina. A prpria palavra ÒpecadoÓtem para algumas destas mulheres uma carga semntica perturbadora: Ò(...) a wordAunt Louisa would not even repeat but that Granny knew what it was (...)Ó ( Anne Firor Scott refere esta sndroma de culpabilidade como um fenmeno largamentegeneralizado, permeando milhares de dirios de mulheres sulistas desta poca:Here were excellent women (É) whose sins were of the most minor kind. Yet they car-ried constantly with them the conception of a jealous, wrathful God, capable of punishing byeternal damnation their innate corruption, whom they were yet supposed to love. Because ofsonality Ð for spirit, for a roving mind, for pride to think well of themselves. (Scott, 1894: 197) ESTIDAPARAMATAR T ÒEvangelical ministers and Northern teachers attempted to bring student dress in line with theirnotions of the simplicity of Christian women and purity (demonstrated in this case in modest clothing)of the Òtrue womanÓ. These two images converged to require understatement, simplicity, and modesty,although a certain richness in fabric and attention to detail and fashionable cut set those with taste apart.Such requirements, however, were not consonant with the image of the Southern belle, whose ligh-thearted nature and coquettish ways suggested ruffles and laces, flowers and furbelows, jewels and lightpastelsÓ (Farnham, 1994: 133). 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 311 Claramente o indivduo livre, objecto de discursos religiosos, filosficos, legais eculturais da poca no era de raa negra nem do sexo feminino. Pelo contrrio, apesardo enorme abismo que separava a condio social da mulher branca economicamentegeral, a verdade que pelo menos num aspecto em particular estes grupos partilha-vam um destino idntico na ordem social do Sul: eram tratados como criaturas infanti-lizadas, e no extremo simplesmente como seres irracionais. Esta viso desumanizantetinha como principal consequncia a definio de uma condio ÒnaturalÓ de depen-dncia, pelo que mulheres livres, escravas e escravos se viam consignados ao mundo womenÕs sphere Ó. de salientar,claro, que o dimetro desta ÒesferaÓ era determinado fundamentalmente pela condioeconmica e racial de cada mulher. Por outras palavras, se as tarefas prticas dentro dacasa eram domnio comum dos vrios grupos, j as funes de superviso eram prer-rogativa da Ò mistress Ó, porventura com alguma assistncia das filhas, as Ò plantao. Do mesmo modo, as mesmas no participavam no trabalho exterior da plan-tao, onde a superviso era responsabilidade de homens da famlia ou contratados. Adistribuio espacial de tarefas de acordo com o sexo era, porm, uma marca da cul-tura branca. O discurso predominante sobre a suposta bestialidade dos negros tinha,entre outros efeitos, um esbatimento ou mesmo anulao das distines socialmenteconstrudas entre os sexos. Se por um lado o sexo e a sexualidade dos escravos eramde um ponto de vista sociolaboral no existia uma discriminao rgida, como sucediado outro lado da barreira racial. Com poucas excepes (algumas incontornveis, comoa amamentao), a agricultura, a puericultura e o servio domstico eram actividadeslevadas a cabo por escravos e escravas, sem profundas distines de sexo nem distri-buio desigual de tarefas de acordo com o nvel de exigncia fsica.Todo o meio cultural envolvente contribua, pois, para que os papis de mistress e (Òspotless womenÓ, Faulkner, 1966: 219) fossem investidos de um elevado refina-mento moral e espiritual que era, afinal, tido como a coroa da identidade colectiva doSul, Òthat for which [Confederate soldiers] diedÓ ( ). Apenas em dois aspectos asua existncia corprea tinha significado relevante em termos comunitrios: na apre-sentao fsica, como vimos, por se tratar da manifestao simblica da importnciasocial da famlia; e na fertilidade, j que a esposa ideal deveria tambm ser capaz degerar uma prole medida das circunstncias econmicas e pretenses do seu marido.Poucas pginas aps a sua primeira apario, Drusilla resume a que poderia aspirartipicamente uma rapariga da sua condio no perodo anterior guerra: Living used to be dull, you see. Stupid. You lived in the same house your father was bornin, and your fatherÕs sons and daughters had the sons and daughters of the same Negro sla-ves to nurse and coddle; and then you grew up and fell in love with your acceptable youngman, and in time you would marry him, in your motherÕs wedding gown, perhaps, and withthe same silver presents she had received; and then you settled down forevermore while yougot children to feed and bathe and dress until they grew up too; and then you and your hus-band died quietly and were buried together maybe on a summer afternoon just before sup-pertime. Stupid, you see. ( , 115) P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 312 Para muitas jovens sulistas a quem a guerra arrancou partes cruciais da sua normalexistncia, quer a nvel familiar e social quer a nvel econmico, a verdade que acaboutambm por trazer todo um novo mundo de possibilidades de agncia, abalando con-sideravelmente as suas anteriores perspectivas do mundo. Drusilla, por exemplo, passaa entender a existncia anterior guerra como um perodo de paz social podre e ilu-sria. Na tranquilidade econmica e social dessa poca ela identifica agora factoresnegativos de estagnao e padronizao de comportamentos, inibitivos do seu desen-volvimento individual, enquanto a guerra agora vista como uma oportunidade pararedefinir o significado da sua (at aqui inconsequente) existncia. Este renovado sen-tido de insatisfao tem inequvoca e generalizada correspondncia histrica, comopodemos atestar pelo testemunho de Ada Bacot:Widowed in her twenties, she had in addition lost her only child, and she found herselfin 1861 without any clear purpose in life. Yet as she contemplated the national crisis, shebelieved herself peculiarly equipped to deal with its demands. Her loss, she thought, had inu-red her to emotional suffering and privation, even though, she conceded, she had experien-ced no material hardship. She looked to war and upheaval as a divinely sent opportunity.ÔNow I can give myself up to my state, the very thought elevates me. These long years I haveprayed for something to do, perhaps my prayer is now being answered.Õ (Faust, 1996: 21-2)Com efeito, para alm dos trgicos efeitos de privao material e emocional, paravrios sectores da populao, e fundamentalmente os que at aqui viviam em totaldependncia e subordinao, a agitao social e poltica constituiu-se tambm comoum espao de interrogao espontnea em relao verdadeira natureza e justia derelaes de poder baseadas em ÒverdadesÓ sociais, como a ÒnaturalÓ hegemonia dohomem branco. No universo social anterior guerra, por exemplo, no teria sido to aceitarem pacificamente a sua condio de pas-sividade e despojamento poltico. Uma vez que a proviso material era absolutamentegarantida pelos pais, irmos e maridos, era mais fcil mant-las convencidas do valordo seu papel ornamental. Na verdade, em grande parte sentiam-se enaltecidas nessamesma funo, empenhando-se em corresponder s expectativas de um discurso socialque premiava o recato feminino e exaltava a santidade do mundo privado da domes-ticidade. No entanto, foradas durante o conflito a substiturem os seus familiares e pr-tico, econmico, artesanal, industrial, educativo, etc.), estas mulheres viram-se inad-vertidamente confrontadas com as suas reais capacidades, assim como com as limita-es at aqui inimaginadas dos Òmasters Ó brancos. No havia, alis, real alternativa aessa descoberta, uma vez que a anterior estabilidade social, poltica e econmica era averdadeira base do pedestal espiritual em que estas mulheres eram colocadas. A partirde agora, bem mais prementes do que as anteriores atribulaes da alma, ocupavam--nas duras e bem prosaicas aflies de mera subsistncia fsica. Necessariamente houve, southern lady , que at aqui devotava a sua inteira existncia aoconforto da famlia, do marido e dos filhos. A existncia das mulheres como simplescorolrios do poder do homem da casa pode bem avaliar-se pelo horror de Louisa Hawk,sacerdotisa do velho mito de feminidade sulista, quando Drusilla se transforma numaprtica e enrgica mulher-soldado imediatamente aps a morte em combate do seu noivo: ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 313 (...) there had been reserved for Drusilla the highest destiny of a Southern woman Ð tobe the bride-widow of a lost cause Ð and (...) Drusilla had (...) thrown that away, she had (É)become a lost woman and a shame to her fatherÕs memory (É). (Faulkner, 1966: 219)Se para a gerao de Aunt Louisa parece natural e auto-evidente que uma mulherse possa definir apenas e sempre em relao a uma sucesso de homens mais pode-rosos do que ela mesma ao longo de toda uma vida ( daughter,bride,wife,widow para alm da viuvez (oficial ou de facto uma vez que at dcada de 1880 era este o destino mais comum para as jovens noSul. Assim se entende o desespero de Drusilla quando por mais do que uma vez tentafazer ver me que o seu ingresso no exrcito confederado no uma estratgia paraassegurar qualquer projecto ulterior de unio matrimonial: ÒCanÕt you see that I am tiredof burying husbands in this war? That I am riding in Cousin JohnÕs troop not to find aman but to kill Yankees?Ó ( 220). de notar, alis, uma curiosa evoluo no dis-curso de Drusilla, cujo ponto de vista se vai de tal modo confundindo com o dos seuscompanheiros de batalha que noutra ocasio fraseia o mesmo pensamento nos seguin-tes termos: ÒWe went to the war to hurt Yankees, not hunting women!Ó ( Claramente, a auto-desidentificao de Drusilla com o ideal de feminidade domstica, southern belle de tal modo extrema que ela passa a constituir-se 233)] sem que a este facto esteja associada qualquer alterao a nvel do seudesejo heterossexual. Verifica-se, no entanto, precipitada pelo caos da guerra, uma pro-gressiva separao em Drusilla do que Judith Butler denomina de Òthree contingentdimensions of significant corporeality: anatomical sex, gender identity and gender per-formanceÓ (Butler, 1990: 137). Embora na narrao existam sugestes ocasionais de queas mudanas operadas ao nvel da imagem de Drusilla sejam um reflexo do seu traumade perda amorosa, parece-me evidente que ela tem origem em razes de ordem bas-tante mais pragmtica. Na sua primeira apario, por exemplo, aquela que conside-rada a melhor cavaleira das redondezas aparece montada num cavalo sem sela, regres-sada da beira-rio, onde foi dar conta de uma horda de escravos libertados que tentamjuntar-se aos soldados da Unio. Este tipo de actividade, e todo o trabalho fsico que agora a sua principal responsabilidade Ð proteger a casa dos soldados invasores, racharlenha, transportar gua ou encontrar comida para a famlia Ð no so compatveis comos incmodos vestidos que normalmente veste. A mudana para as roupas de homem,que parece de facto despoletar a progressiva mutao a nvel do seu comportamentosociossexual, surge, pois, de uma contingncia essencialmente prtica. A partir domomento em que veste o primeiro par de calas, a expresso Òlike a manÓ surge comoum autntico refro nas descries de Drusilla:(É) Cousin Drusilla rising astride like a man (...) (Faulkner, 1966: 100-1).She was not tall; it was the way she stood and walked. She had on pants, like a man. Her hair was cut short; it looked like FatherÕs would when he would tell Granny abouthim and the men cutting each otherÕs hair with a bayonet. She was sunburned and herhands were hard and scratched like a manÕs that works. ( (É) her short jagged hair and the manÕs shirts and pants. ( , 113) P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 314 (É) her short jagged hair like she had cut it herself without bothering about a mirror (É) riding the troop like she was a man. ( (É) one young girl who happened to try and look and act like a man after her swee-theart was killed. ( Liberta do constrangimento fsico das roupas de mulher, Drusilla inicia um processode tomada de conscincia do forte constrangimento poltico e espiritual a que at aquiesteve sujeita. Confrontada com o reconhecimento do fenmeno de construo socialde identidades atribudas ao sexo anatmico, e sentido-se limitada a este sistema cul-tural binrio, decide modificar, ou melhor, ÒinverterÓ a sua apresentao corporal (queratravs das roupas, quer atravs da postura), de modo a que outros reconheam na suapresena fsica no a ausncia de poder, identificada com os adereos de feminidade,mas antes a evidncia deste, consubstanciada nos vrios uniformes de masculinidadecom que passa a apresentar-se. Diane Roberts v neste transformismo de Drusilla umatentativa de inventar uma terceira identidade sexual (Roberts, 1994: 24), ou seja, nemmasculina, nem feminina, mas talvez Aunt Louisa esteja mais prxima na sua classifi-cao da rebeldia de Drusilla. Podemos presumir que o que Aunt Louisa quer real-mente dizer quando refere: Ò(...) Drusilla had deliberately tried to unsex herself (...)Ó(Faulkner, 1966: 217) realmente Òtried to un-gender herselfÓ, uma vez que Drusillano inventa em si uma nova categoria de identidade sexual, antes tenta alinhar-se coma nica categoria de identidade sexual com indisputada hegemonia sociopoltica. Poroutras palavras, se certo que a ambiguidade gerada pela sua fuso de identidades boyish belle ) pe em causa esse sistema dual masculino/ feminino, no este de todoo objectivo de Drusilla, cujo projecto poltico manifestamente individual. Mais do quecriar uma nova identidade sexual, Drusilla tenta tomar o caminho mais curto para selibertar totalmente da identificao com ausncia de poder poltico, ou seja de se marcar e de se desmascarar de acessrios ÒfemininosÓ onde a comunidade l limita-o, passividade, incapacidade, dependncia. Tendo j os factores raa e classe socioe-conmica do seu lado, ou seja, aqueles a partir dos quais todas as outras categorias somarcadas nesta cultura como politicamente secundrias, s falta mesmo incorporar umaidentidade sexual ÒneutraÓ em termos de poder poltico, que neste caso inequivoca-A diatribe sociolgica de Drusilla que vimos anteriormente, claro, to incisivaquanto radical para uma jovem da sua poca. Drusilla critica de forma breve mas con-tundente a forma como at aqui a vida de jovens como ela era totalmente condicio-nada por toda a espcie de presses familiares e sociais. No so apenas as condiesrestritivas de uma existncia exclusivamente dedicada domesticidade e maternidadeque Drusilla rejeita, considerando esse tipo de rotina de um ponto de vista existencialum permanente estado de sono. O ritmo mecnico do seu discurso e a aluso a rituaisde hereditariedade e padronizao dos comportamentos femininos atestam a sua frus-trao perante a impossibilidade de, enquanto mulher, construir e ver reconhecida umaidentidade individual. Mas sem dvida que o contexto particular em que Drusilla fala determinante para o articular da sua nova perspectiva. Todos os vestgios que encon-tramos do seu modo de vida antes da guerra parecem indicar que at ao seu incio Dru-silla vivia de acordo com as expectativas da sua classe. Sabemos, por exemplo, que ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 315 tambm teve o seu Ò Ó, um noivo herico que acaba por morrer em combate; sabe-mos ainda, atravs dos simblicos bas do enxoval que a sua me transporta, que asua indumentria habitual antes do conflito eram convencionais vestidos de arcos. Asilla, pelo menos da sua submisso aos esteretipos sexuais ento vigentes.Para comear, embora no se possa dizer que a expresso de sentimentos idnticospor parte de mulheres fosse indita no perodo anterior guerra, a verdade que setratava principalmente de desabafos e confisses secretas a dirios privados, frequente-mente seguidas de palavras de retractao e pudor. Com efeito, era religiosa e socialmentee a religio insistentemente frisava a importncia do auto-sacrifcio e da dedicao aomarido e filhos, que seriam a expresso na terra da servido ao Pai Divino.tes desafios f das mulheres em geral, no apenas em termos puramente teolgicos,mas tambm em relao a vrios dos preceitos comportamentais reforados pela ideo-logia religiosa, nomeadamente a passividade, a submisso e a dependncia. Para almdas terrveis privaes materiais que desde bastante cedo estas mulheres sofreram naretaguarda do conflito, o facto de a esmagadora maioria se ver sem a presena e orien-tao dos homens da casa determinou que elas mesmo tomassem responsabilidadepela sua sobrevivncia e a dos que ficavam. o que acontece com Judith, Clytie e RosaColdfield em Absalom! Absalom! e agora Rosa Millard, que tambm se v subitamenteforada a tomar conta da famlia e dos escravos de Sartoris e de todo o seu patrim-nio. Se no caso de Granny Millard e de inmeras mulheres sulistas a guerra no abalouas suas crenas (muitas nunca sequer duvidando do apoio divino sua faco poltica),a verdade que muitas outras se viram foradas a questionar conceitos at aqui nadaproblemticos, como claramente o caso de Drusilla na fico, ou de muitas das suascongneres histricas: Significantly, some women no longer able passively to bear warÕs suffering were propel-led to action in pursuit of their own interests in this world. Ida Wilkom of Louisiana abando-ned resignation and calm acceptance of her lot for political expression (É) [She] demandedher husbandÕs release from the army, explaining, ÔI have tried everything to submit to the willof God in tranquil resignation; but I find, a human being can suffer only according to humanNa sua nica aluso remotamente religiosa, Drusilla agradece sarcasticamente a Deuspelas actuais condies de precariedade material e econmica, que ironicamente alibertam das vs obrigaes que acompanhavam o estatuto da southern lady: God for nothingÓ (Faulkner, 1966: 115). Sarah Morgan, uma jovem do Louisiana dapoca, revoltada por no poder tomar parte na guerra, questionava-se: ÒWhat is the usenascido mulher, uma vez que os privilgios da sua anterior existncia se transforma-vam no de agora (Faust, 1996: 20). Poderia, alis, imaginar-se que umaexpresso de rebelio to radical como a de Drusilla Ð no apenas em termos seccio-nais mas sobretudo em termos de desafio poltica sexual da sua cultura Ð apenas sepoderia registar em fico. No o caso. Gilpin Faust refere registos de 400 mulheresde ambas as faces infiltradas nos campos de batalha ao longo dos 4 anos de guerra, P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 316 salientando inclusivamente um caso que tivera semelhanas espantosas com o trajecto(É) Amy Clarke, who volunteered as a private (É) in order not to be parted from herhusband. After his death at Shiloh, she continued to fight, was twice wounded, and then wastaken prisoner by the Yankees, who discovered her sex. ÔBut they did not permit her to returnÓto the South, the Mercury explained, Ôuntil she had donned female apparelÕ(É). ( (Esta ltima exigncia ecoando com curiosa exactido a imposio de Sartoris aDrusilla aps o seu casamento. Apesar de no contexto desregrado da batalha ter con-vivido sem quaisquer objeces com o uniforme desta Ð isto durante uma longa tem-porada em que lutaram lado a lado, como iguais Ð de volta comunidade Sartoris noest preparado para conviver no seu casamento com um corpo to ambguo de umponto de vista sociossexual).Relatos pessoais de mulheres sulistas do perodo de 1861-65, recolhidos por WalterSullivan, contam histrias similares de mudana radical na vida das cidads. Entre cartase excertos de dirios incluem-se relatrios como o de Belle Boyd e Lorta Janta Vlas-vem envolvidas em espionagem de alto risco, chegando mesmo a ser detidas pelaUnio como prisioneiras de guerra (Sullivan, 1995). ÒWhatÕs a dress?Ó Durante o perodo de guerra, Drusilla resiste a ser contida no esteretipo de femini-dadeprescrito com uma nota de desafio que no Sul desta poca teria tido contornosde heresia. Na verdade, o ideal da southern womanhood constituindo-se ele mesmo como uma ideologia semi-religiosa, torna-se agora um de contestao por excelncia. A ausncia de discurso religioso em Drusilla, ao contrriodo que vemos em Granny Millard, no s est de acordo com o seu novo papel mascu-linizadocomo ao mesmo tempo sintomtico de profundas fissuras no sistema de valo-res, quer a nvel religioso quer a nvel da definio social das identidades sexuais. Nestesentido, as transformaes operadas na sua apresentao (/ representao) fsica deDrusilla, da disposio do seu corpo, podem tambm ser lidas como uma forma de ico-noclastia, uma rejeio de tradies e imagens de feminidade que at aqui lhe haviamsido propostas como leis absolutamente naturais. Se quisermos, uma espcie de queimade rebeldia contra a conveno social e de oposio ao culto da imagem fragilizada damulher Ð uma forma eficaz de criar e expor atravs do seu prprio corpo as Òdes-continuidadesÓ do sexo pr-discursivo que Judith Butler discute em Gender Trouble When the disorganization and disaggregation of the field of bodies disrupt the regulatoryfiction of heterosexual coherence, it seems that the expressive model loses its descriptiveforce. That regulatory ideal is then exposed as a norm and a fiction that disguises itself as adevelopmental law regulating the sexual field that it purports to describe. (Butler, 1990: 136)Ou seja, a partir do momento em que Drusilla adopta com considervel sucesso com-portamentosmasculinos, expe no apenas a artificialidade de comportamentos iden-tificados como ÒnaturalmenteÓ femininos ou masculinos, mas tambm a natureza frag-mentria, flutuante, e essencialmente imitativa dos vrios factores constitutivos dessa ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 317 identidade sexual supostamente una e coerente. A denncia da gnese poltica da divi-so sexual feita isolando o sexo biolgico das caractersticas comportamentais quelhe so atribudas e dos novos comportamentos ÒincoerentesÓ assumidos. A sua novaliberdade de aco e movimento denunciam o modelo de feminidade at aqui culti-vado no apenas como construo social mas sobretudo como constrio social. Paracomear, ao contrrio do que acontece com muitas das heronas de Yoknapatawpha, apresena fsica de Drusilla sempre uma presena indiscreta, centralizadora das aten-es, uma perptua perturbao para o observador Bayard, e pois para o leitor que av atravs do olhar deste. Este corpo, no apenas bem visvel mas em constante agita-o em si mesmo a negao do ideal de mulher fantasmtica, que ÒpairaÓ, que vemosem Rosa Coldfield ou em Judith Sutpen.Movido porventura mais pelo seu perspicaz sentido histrico do que propriamentepela liberdade ideolgica e artstica, de forma ainda mais espectacular do que em , Faulkner apresenta o contexto paradoxal da Guerra Civil numa relao siner-gtica com a crise dos esteretipos sexuais da cultura sulista contempornea. Muito setem discutido o papel Rosa Millard e Drusilla no desafio s convenes sociais de femini-dade. Mas necessrio manter presente que, particularmente no caso de Drusilla, a trans-gressodesses cdigos sociais a pretexto da defesa ÒnacionalÓ no tem uma verdadeiradimenso de ÒfeminismoÓ primordial, isto , no tem pretenses nem finalidades polti-cas no sentido de representao de um colectivo, de uma identidade de grupo. Toda aactuao ÒirregularÓ de Rosa acaba por reafirmar o anterior status quo da diviso dos sexos,uma vez que a sua inteno preservar o patrimnio e a famlia de John Sartoris atnada se detm na considerao abstracta da sua subjugao poltica. O que ela faz identificar e eliminar os obstculos sociais sua vontade de agir de identidade sexual for o que nesse momento obsta a essa sua liberdade, ento ser esseo obstculo a derrubar. Enquanto o actual caos social lhe der espao de manobra paraisso, Drusilla passar por cima deste preceito social como por cima de qualquer outro,como uma espcie de verso feminina de Thomas Sutpen; tambm ela tem a sua espciede Òruthless Drusilla codeÓ. Com efeito, no se pode exactamente dizer que seja maisou menos subversiva que Sutpen, no sentido em que ambos se limitam a tentar ultrapas-sartudo o que possa comprometer as suas misses pessoais. So questes de ambioindividual, mais do que de subverso consciente de normas sociais de sexo ou de classe,e ambos tomaro por quaisquer meios o poder poltico que se propuseram alcanar.Nesta perspectiva, se comum entender a mudana radical na aparncia de Dru-silla como uma experincia de Faulkner na sua explorao ficcional das relaes depoder entre os sexos, a verdade que essas mudanas devem mais a realidades hist-ricas em registo do que ao seu arrojo ideolgico ou criativo. um facto que o trans-vestismo de Drusilla coloca vrias questes dentro e fora da narrativa acerca das rela-es entre homens e mulheres neste quadro cultural, mas igualmente verdadeiro queesse tipo de transformao era bastante mais comum durante a Guerra Civil do que sepossa partida imaginar. Neste sentido, e sem qualquer desmrito do ponto de vistaartstico, Faulkner limita-se a apresentar factos historicamente verificveis, mudanas deatitude no de uma ou duas mulheres sulistas da poca, mas de milhares de mulheresda Confederao que colocavam a defesa do sentido de nao do Sul acima dos pro- P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 318 tocolos sociais da feminidade. O penteado de Drusilla Ð cabelo curto, com estilo arra-pazado Ð por exemplo, no s no teria sido totalmente excepcional como seguiainclusivamente uma espcie de moda, ao ponto de ter um nome especfico: ÒshinglingÓ.Muitas mulheres realmente cortavam o cabelo desta maneira, no apenas por motivosprticos (menor disponibilidade de tempo e de serventes para ajudar na preparaodiria dos penteados e vestidos), mas tambm por necessidade de uma afirmao maisagressiva: ÒIt was the fashion among some young ladies to wear short hairÓ, lembravauma mulher acerca do perodo 1861-65. ÒIf they could not go with their brothers to thewar, they would, at least, look as military as possibleÓ ( o indumentria, colocavam-se questes idnticas e limitaes ainda mais srias.Tornou-se tambm um fenmeno generalizado as mulheres comearem nesta altura atrocar os seus vestidos por roupas de homem. De um modo geral, tendo em conta ovalor extremamente pejorativo na poca do conceito de Ò unsexed woman Ó, sem dvidaque este tipo de deciso teria de emergir de alarmantes necessidades prticas (escassezde tecidos, novas tarefas que exigiam maior necessidade de movimento, e por diante):ÒCordelia Scales, carrying a pistol whenever she left the house, parted her hair on the certo que Drusilla apenas toma conscincia destas possibilidades com o advir daguerra e de toda a desordem social consequente. De outro modo, possivelmente nuncateria sido despertada, ou pelo menos seria publicamente manifesta, a sua sagacidadede aco. Do mesmo modo, quando o conflito chega ao fim, a mulher que o exrcitoda Unio no conseguiu derrubar no tem agora fora para enfrentar sozinha a pres-so social da polida comunidade feminina de Jefferson, que reclama o seu regresso conformidade com o esteretipo sexual que desafiou todo esse tempo. Sem dvida queao fraquejar da sua resistncia moral no alheia a atitude de Sartoris, seu ex-coronel.Se at aqui John a respeitou como um dos seus soldados mais destemidos, terminadoo conflito acaba por ir cedendo ao clamor das senhoras lideradas por Louisa Hawk.Como consequncia, e em particular aps o casamento com Drusilla, acaba por voltara reconhecer nela a sua qualidade de ÒapenasÓ mulher, ou seja, uma presena circuns-raj-la a envergar de novo os vestidos, como se Drusilla comeasse gradualmente aimaterialidade que referi anteriormente. A obsesso com a sua imagem corprea no sua, mas dos que sua volta a observam, como ela bem sabe, e da o horror que lhecausa a viso do ba dos vestidos (ÒthatÕs what beat Drusilla: the trunksÓ, Faulkner, 1966:230). Como se constata em seguida, no sequer o caso que Drusilla retome a umapostura mais ÒfemininaÓ dentro desses vestidos. Mas ela est ciente, como esto as 14senhoras das charruas, que os vestidos a definem assim para outros olhares, e que issolimitar eficazmente a sua liberdade individual; no Drusilla j quem ÒrepresentaÓuma identidade sexual, so as roupas que agora o fazem por ela, contra a sua prpriamuito tempo vivido prisioneiras dos seus prprios smbolos de privilgio:The sensations generated by wearing menÕs clothing were unexpectedly powerful,prompting [Emma Crutcher] to reflect to her husband, Will, about the way in which dress sha-ped not only female bodies but female lives. ÔA woman,Õ she wrote, Ôdoes feel so light and ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 319 ethereal when she slips out from the long, tangling, encumbering skirts that wrap around herfeet, that I expect I should find great difficulty in keeping my toes from flying up like a bal-Por outro lado, o que me parece em toda a problemtica que sempre rodeia a cor-porealidade de Drusilla que o factor classe muitas vezes mais determinante do queo factor de identidade sexual, o mesmo se verificando no caso de Rosa Millard. Na ver-dade, apenas lhes tolerado ocupar lugares de poder identificados como masculinosuma vez que dentro da sua classe socioeconmica, apesar de mulheres, de qualquermodo j so mais poderosas do que, por exemplo, um homem branco do meio socialdesignado por Ò white trash Ó. bvio que a integridade fsica de Drusilla num meioaltamente machista como o exrcito, ainda por cima em condies prolongadas dedureza extrema, se preserva essencialmente devido ao seu estatuto privilegiadoenquanto familiar do aristocrtico Coronel. Tambm Rosa Millard retira o mximo pro-veito desse elevado estatuto social durante um largo perodo de tempo, pois no sepode imaginar que os seus mirabolantes logros e negociaes com os unionistasencontrassem o mesmo tipo de acolhimento e tolerncia por parte do exrcito inimigocaso se tratasse de uma mulher pobre e sem ligaes familiares de peso no mundo mili-tar e poltico. So comuns as acusaes a Faulkner de castigar estas duas mulheres como desaparecimento e a morte pela sua usurpao do poder masculino, e a Drusilla comofraude deste ÒfeminismoÓ incipiente, por se revelar uma sanguinria no dia dos assas-sinatos eleitorais. Mas na realidade, ambas conseguem aquilo que conseguem tambmpor fora individual prpria, e no porque as mulheres se destaquem repentinamente,revelando-se como melhores do que os homens. Granny atinge os seus objectivos eco-nmicos porque uma hbil gestora e negociadora. Drusilla distingue-se na guerra porser uma combatente destemida. Outras mulheres da histria, como Louisa Hawk, porexemplo, no alteram em nada a sua postura nem se afastam por pouco que seja domodelo tradicional de feminidade. Assim, ao contrrio do que cr Roberts, penso quea morte de Rosa Millard no o preo da mudana de mentalidades em relao aosprivilgios da sua identidade sexual. Quem a mata no discrimina sexo, classe, idadeou cor, mas apenas lucro financeiro. Sem dvida que quaisquer que fossem as suas cir-cunstncias individuais, o negcio teria desenlaces idnticos. Do mesmo modo, tambma violncia de Drusilla deve ser analisada em contexto, havendo vrias questes a pon-derar em relao ao seu permanente estado de raiva. Naturalmente passa por umestado de choque, ao ver todo o seu mundo social e familiar brutalmente destrudo.De acordo com a sua educao privilegiada, parecem existir muito poucas razes porque continuar a viver. Mais tarde, as exclamaes de dio que passa a dirigir ao exr-cito Yankee, e que muitas contemporneas histricas ecoavam das formas mais diver-sas e estridentes, em grande parte atribuvel ao seu recm-descoberto sentido de ina-dequao e inutilidade. Especialmente quando existe o tempo todo uma certa cons-cincia de que se v agora to alargado o seu campo de aco, apenas por uma sim-ples contingncia logstica, e que no final da guerra esse poder transitrio regressar amos masculinas. Em relao ao seu desprezo pelas vidas dos dois homens assassina-dos por Sartoris, preciso relembrar que Drusilla no foi educada, como acontece comJudith, com igual sentido de equidade em relao ao negro. Apesar de terem ambas amesma educao racista, Judith no viveu sempre segregada como Drusilla. Teve desde P 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 320 a mais remota infncia a companhia permanente da sua inseparvel meia-irm, Clytie,o que muito ajuda a explicar a sua aparente imperturbabilidade perante a diferenaracial. J Drusilla cresceu vendo o seu estatuto garantido sob a forma de subordinaode brancos pobres e de negros escravizados.Por outro lado, o fervor nacionalista da comunidade de Sul em geral sobrepunha--se a todos os outros valores sociais. Inmeros abolicionistas do Sul acabavam por sejuntar ao exrcito confederado, obrigados pelo seu sentido de lealdade aos estadossulistas, de modo que mais dificilmente seriam os apoiantes da escravatura a repensara questo racial justamente no seio desta convulso poltica e social. O racismo pro-fundo era, de resto, igualmente marcado nos dois exrcitos em confronto. Ora se comodiscuti anteriormente a genuna preocupao de Drusilla garantir alguma suficinciapoltica individual neste agitado e traumtico contexto, no ser justamente este omomento em que se deter em contemplaes humanistas Ð quer em relao aos odia- yankees, que servem de bode expiatrio para toda a sua frustrao pessoal, querem relao aos negros, ou mesmo em relao s outras mulheres. Com efeito, a rebel-dia de Drusilla no plano das identidades sexuais no , como vimos, expresso de umsentido de opresso de grupo, mas de motivaes puramente individualistas. Na ver-ironicamente, a escrava Louvinia. Alis, o desenvolvimento final de regresso ÒprisoÓdo ideal recuperado de feminidade a sua maior lio poltica, e tambm uma esp-cie de preo que Drusilla paga por querer rebelar-se em isolao, acabando por trans-formar as outras mulheres da comunidade nas suas mais implacveis perseguidoras.H tambm que manter presente que, realisticamente, o valor da vida dos doishomens assassinados por Sartoris teria de facto sido considerado pela elite branca daregio como inferior aos interesses da hierarquia racial do Sul, que em termos prticosse manteve firme muito para alm do final da guerra. O prprio discurso dos movi-mentos feministas no Sul no incio do sculo XX reforavam essa segregao, uma vezque parte do argumento de elevao da condio da mulher branca assentava nadegradao agravada da condio da mulher e do homem negros. Por outras palavras,em textos como este talvez no devamos ser to rpidos a imputar misoginia deFaulkner os desenlaces menos inspiradores das histrias de Drusilla e da sua tia. Dru-silla no apenas a (de resto admirvel) herona novecentista com um ÒincmodoÓdefeito de obsesso racista, que fere a sensibilidade politicamente correcta do leitoractual. Tal como Sartoris e Sutpen, ela fundamentalmente o produto da sua poca ede uma cultura profundamente mergulhada em crises sociais e ideolgicas. Toda afora destes perfis e a sua obstinao cega pelo poder no fundo escondem um pro-fundo sentido de insegurana e de desajustamento face a expectativas sociais. Por outrolado, numa leitura foucaultiana deste sistema sociopoltico, ainda que consideremos aactuao destas mulheres insuficiente do ponto de vista das relaes raciais, em termosdo questionamento das relaes de poder entre os sexos, no se deve subestimar aimportncia da sua interveno social aos mais variados nveis. Apesar do enormeesforo ps-Guerra Civil para reinstalar, intacto, o anterior sistema de relaes sociais, a inscrio continuada destas breves agitaes, subverses e rupturas o que permitepara a reformulao progressiva do conceito de feminidade no Sul, at aos dias de hoje. ESTIDAPARAMATAR T 02. Parte III [275-404] 20.12.06 16:33 Pgina 321 BUTLER, Judith (1990), Gender Trouble:Feminism and the Subversion of Identity York and London, Routledge.EDWARDS, Laura F. 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